★ Flávio Souza Cruz ★

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terça-feira, novembro 18, 2008

Uma carta é um relato de intenções. Tingida de branco, sangue ou lágrimas a carta é, em seu próprio papel, uma velada intenção de transportar universos. Letra pomposa, rabisco difícil, ornada de flores, entregue em mãos... a carta é, antes dela mesma, uma brincadeira. Jogamos esperanças e expomos aflições em papel tal como o rolar de uma bola de gude. Montamos buracos e seguramos a roda do tempo para no espaço certo tocar a esfera de nosso intento. A carta planta respostas no jardim de nosso querer.

Ismael trabalhava com letras. Desde pequeno, soubera sua missão - costurar palavras. Voz calma, olhar sereno, Ismael recebia de bom grado pedaços quebrados de intenções. Eram muitos e vinham de todos os cantos trazidos por olhares mil: "Costure aqui, por favor... olhe ali aquela letra faltando... lembre-se do envelope, heim!"!

Trabalho árduo, muitas vezes ingrato, repetia-se ali nas mãos do bom rapaz a mágica das mariposas. De duas pedras fazia ele o fogo que queimava em letras no envolver de seus dedos. E no crepitar da foligem, no sopro da labareda salpicavam mariposas em brasa. O ar era então um rasgo de asas enfeitiçando o vento. Rodavam, planavam, zuniam as mariposas em volta da chama. Olhos dourados e frêmita mão - Ismael segurava o sopro do fogo e com palavras fortes marcava uma por uma com letras por língua escrita o ventre das mariposas. E assim caiam uma por uma com o queimado ventre por sobre o amarelo papel do dia. "queima queima dor, faz no vazio incerto, carvão e sombra virarem flor", repetia ele em cada leva. Pétalas não só em verdade, mas de espinhos também se colhiam nas queimaduras do papel. Pequenos mundos de sonho e dor tomavam forma de desencanto e amor em cada mariposa morta.

Pães e pedras eram dados como paga, mas era dos olhares que Ismael se alimentava. Mastigava bem mastigado cada pedacinho - olhar de pedinte, alegria e volúpia, desalento e amargura, envergonhado jeito, e também às vezes do mais puro amor. Os pães do mundo eram feitos e seu vinho, um molhar de olhares. Nem sempre lhe apetecia o labor, é verdade. Pelas manhãs regorgitava suas mariposas e sentava no canto do quarto a desenhar as trajetórias de fogo. E cada desenho, cavalo alado, casa de pau-a-pique e noite estrelada por peixes, cada rabisco era uma página de seu livro de memórias. Vez por outra, uma mariposa suicida doava seu sangue em chama e escrevia por si mesma uma letra no livro de Ismael. E era tal o encanto da vida-morte que cada página letrada do livro dos desenhos entoava um canto quando aberta.

Dizem que Ismael se foi para os jardins do esquecimento. Virou lenda, boato, conto de caboclo daqueles bem perdidos que a gente só encontra nas taperas do mato. Na noite clara, no entanto, vejo-o andando aqui mesmo dentro de mim...fazendo trilhas de fogo... "meio sem rumo", penso eu...jogando por vez página de cavalo alado, casa de pau-a-pique, noite estrelada por peixes, uma labareda mastigada a nos calar.

quarta-feira, novembro 08, 2006

"Na lúgrube cela empoirada dos meus cuidados, há um quê de folhas verdes que teimam em se erguer. Os galhos do sustento são como linhas de cobre entrelaçadas. Perfuram o céu, perfuram a terra, perfuram a mim. E da transfusão colhida, me dou ao prazer do encharco. Três linhas a menos e nada a dizer. O texto se come às avessas. Aperto a esponja que sou à espera da fuga dos insetos. Uns sempre ficam, maledicentes. E assim vou, caminhando com as folhas de esperança, o remoer dos galhos e o aspergir dos insetos. O passo é vagoroso, o mundo é grande, mas eu o mastigo."

Zidur parou à porta do amigo. Bateu três vezes - o aviso combinado. Um sorriso acolhedor aparece. Entram. A poltrona serve agora como o espaço da lonjura próxima. Zidur fala então das últimas músicas que ouvira, conta sobre a vontade de ir ao jogo no domingo e aguarda ansioso pelo cafezinho servido. Ele repara a atriz gostosa na TV, elogia em eufemismo. Sorri. Um inseto abre as asas lá por dentro. Coloca uma perna sobre a outra, o tempo passa. Jogam cartas, buraco, quem sabe. Gritam, bebem cerveja. A patroa do amigo traz uma porção de pastelzinhos portugueses. Comeram, gritaram, riram e beberam mais. A porta se abre, entra o Cláudio, outro amigo. Fecha-se uma roda. A noite prossegue, o papo é bom. O amigo mostra as novas músicas e agora temos um misto de debate a apreciação. Um pouco mais quieto, Zidur sente o som de Ute Lemper e relembra algo não vivido. Duas, três horas da manhã, hora de ir. Despedem-se.

E tudo fizeram sem se ver. E tudo fizeram como que em um breve tocar de galhos. Na hora do café, uma folha do amigo caiu. Olharam-na, mas ninguém a pegou. No prosaico encontro, era melhor o pastelzinho a comer a vida. Zidur, discreto, fechou os olhos e sentiu o percevejo lhe correr nas costas.

quarta-feira, março 09, 2005

Escutei lá pelas bandas do sul, da boca de um velho escritor, uma lenda sobre as mulheres. Conta a estória que elas, em verdade, são seres divinos, são anjos aqui na terra. Do conto à verdade, para sabermos da estória, num maior tanto, é preciso que nos salvemos do encantamento.

Miguel chegara em casa e ainda era cedo. Reclamava do dia, reclamava das horas, reclamava dos pães à mesma. Na grosseria das mãos e força nos braços seu corpo, da camisa azul ao sapato negro, um acalmar foi se dando. A mulher lhe trouxe a bebida dizendo "quieta teu corpo ao meu, bebe teu perfumado vinho." E ele dizendo "eu te quero, mas recuso o afeto." Ela sorrindo e se jogando corpo e alma, como se do nada os pudesse separar. E do seio a boca em lábios, as mãos em dedos fez um todo quase nó emaranhado. Morderam-se. Comeram-se, amaram-se. Ela em tudo, ele em partes. E lamberam-se, cravaram-se, amaram-se. E ele dizia "vem"; e ela dizendo "mais"; e ela dizendo "aqui" e ele dizendo "mais"... E no arrumo dos corpos em derrame se deu em caldo a profusão de Miguel, urdido em grito de exaustão. A nem tão linda, mulher deitada, embaixo, o arfar feito narina e estorpor. Respiram, arfam. Miguel fecha os olhos. Uma asa penetra a cama. Apruma, corta o véu. Abre-se, velada, lânguida asa. Voa. E ao fundo, sente-se o cheiro de um café com broas, um resquício da tarde.

Os olhos entreabertos, a sombra nas pálbebras, a luz e agora sombra. Um vulto, uma asa. Miguel ao lado, e a mulher do outro. Ele a olha e jura ser ela um anjo. E por fé, agora sentado, lençol arreado, Miguel a vê - costas abertas, pedaço de carne, pedaço de gente, pedaço de asa.

Acorda, as mãos na cama. Volteia a cabeça e diz: "Isaura, sonhei que tinha me esquecido de uma coisa muito importante. E eu queria... eu queria te dizer..."
Mas o encatamento trava seus lábios, no abraço de Isaura, no aconchego dos dias. E os anjos, escondidos na escada, bocas em dó, em prece arfaram - amém.

terça-feira, março 08, 2005

A lágrima é uma gota de humor, um pingo. Ornamento prateado com que bordam os panos de dó, um tudo-nada, um tudo-ter em lágrimas na voz. "Laurinda, deixo-te a menina. Vou-me. Tu sabes. Nada acrescento mais. Teu pai em carne seca me quer. Parto. Me deixo para trás em teus braços. Me continuo nela, me pertenço em ti. Minto. Que meu desejo é morte. É Pedro quem deve te cuidar. É Pedro o homem da tua vida. Vou-me, Laurinda. Me perderei no Rio, covarde que sou. Teu peda..." O papel amassado, meio queimado, meio pedaço... a mão apertada. O olhar agudo e a dor estampada em íris azul. A menina chorava. O corpo ardendo, os olhos fechando. A criança cheirava e a lágrima escorria, boca seca de dor. Panos em dobra e ornamentos em prata. "A casa, a fazenda, o campo queimado." Queimada ardia.

Laurinda olha para o lado. A tia Isadora, Julinha nos braços. Um quarto as separa. Um grito, um respiro. Mais nada. Dorme, o corpo queimado.

E mal sabia José e também agora Pedro que o amor fora cama, e que a tez, agora chama, fora a loucura de uma perda. Em prece, oraram. A tia, Pedro e Julinha no colo.
Hoje está viva, a casa se foi, a pele um pedaço, e o amor, aquele em chama, também.
A lágrima é um pingo com que se bordam os panos de dó.

segunda-feira, março 07, 2005



No encontro da rua Augusta com a praça do Rosário número cinquenta e dois, Wanyr, passo altivo, se defronta com o Sr. Samuel. Em cordial e afável sorriso os dois levemente abaixam a cabeça. Samuel, inclinado para a esquerda, um gesto ainda com o braço. Se estudam. Wanyr, olhar concêntrico lhe mede olhos, boca e rugas como se o vento lhe dissesse coisas. Desenha na mente o rosto e percorre cada traço. Lhe intriga o Sr. Samuel.
- Bom dia.
- E já quase noite, emenda Wanyr.
- Saindo?
- Chegando.
- Então um abraço.
Wanyr, braço levemente erguido, um ultimo aceno.
Não entendia de fato este Samuel. Sempre o encontrava nos mais diferentes lugares, nos mais diferentes caminhos, nas mais diferentes casas. E nada disso lhe fazia sentido. "E nada faz sentido", pensou alto. O mundo de Wanyr era um quadrilátero quase-perfeito, há de se ressaltar. De fato, Wanyr e o mundo se davam muito bem. Ele se sentia um escolhido e o mundo o retribuía na sua esperada dignidade. Wanyr andava pelos corredores e quartos, pelas ruas e casas, sorriso sempre aberto, levemente esticado para a direita. Esbarrava às vezes nas plantas e no pé, mas era um hábil observador. Adorava e tinha obsessão por quadros, molduras e papéis. Ele media o mundo e media as pessoas. Enquadrava a vida e emoldurava as pessoas. E assim, Wanyr, dia-a-dia escalava papéis. E assim dizia - "aquele é aviador, este, aviário, já aquela, nariz angulado, bancária de balcão". O mundo de Wanyr era belo pois nos quadros a vida era comportada. E assentava à tarde, satisfeito com as vidas emolduradas na parede. E de súbito apareçera Samuel, aquele que a tudo fugia e lhe angustiava. Buscava e buscava molduras e papéis para Samuel, mas em nada este lhes cabia. Pensou nos batistas, pensou nos espíritas, pensou em ateus e até budistas. Nada e ninguém lhe salvava. Foi assim então que Wanyr, parado naquela tarde de domingo, chorou.

E das mãos lhe nasceram folhas. De Wanyr as pernas formadas troncos sangraram os tacos da sala. E a terra misturada ao musgo lhe subiu com os bichos da floresta. As folhas se fecharam e lhe taparam o corpo. E no escuro, agora dentro, Wanyr descobriu que agora, desde sempre e muito antes - ser apenas e não mais, um cara na multidão, um cara cego.

quinta-feira, março 03, 2005

Na beirada do laranjal moram cheiros do passado dos meus passos. Na beirada do laranjal mora o balanço do meu sorriso. E lá bem fundo, na beirada do laranjal, mora o rio do meu sonho. Lá, bem antes, bem cedo, bem viva eu corria, longe, caminhando nos cheiros, nas folhas do laranjal.


Ela cheirava folhas e sentia peles. Ela cheirava a pele e a sentia folha. Trocava cheiros por lembranças, odores por palavras. E na gramática diária, recitava versos para a rainha da noite. Embalava pétalas no colo e escrevia receitas com as lembranças da infância. A queda no chão, seu choro, o pai correndo... Ela embalava o passado com música do dia. Na beira do laranjal, bem sabia, havia um cheiro para trocar palavras. E a cada abrir das narinas lhe entravam sonhos. Na beirada do laranjal, bem sabia, havia odores de irmã-vida e irmão-sol. Contava as amigas e na roda de dança, contava as folhas, caindo aos montes, lhe fazendo princesa. Ela sabia e bem hoje o sabe saber das palavras que se trocavam sempre. Ela pensava "agora", mas na tinta escrita aparecia "acorda". Ela teimava e era "agora", mas sempre "acorda", a terra dizia. Ela escreveu "acorda" e a terra, e o tudo nela, as sementes, e o laranjal, todo o cheiro, todo o ar se perderam no antigo e sempre. Ela largou o reviver e num aprumo de vida revolveu em viver. Ela era um sopro em cheiro e ficou assim, caminhada, bem parada. Era a mão nos lábios e olhar pra gente. Um sorriso nos lábios e o dedo na boca. Olhar em tudo pra se dizer casta. Ela largou dos laços e nos largou por lá... nos cheirando o ar na busca do que se passou ali, querendo saber, bem cedo... onde mora ela, "a verdade" das folhas, a voz do laranjal.

quarta-feira, setembro 03, 2003




Naquele soluço do tempo, chamado colo de Deus, lhe contaram ser um filme a projeção daquilo que deveria cumprir logo abaixo. E que não se preocupasse, pois o rolo já estava fechado e a luz na tela íngreme iria guiar, e quase sempre, até mesmo empurrar, seus passos para boa cena na fita poder ser. Lhe deram violino e uma pauta e preocupar apenas com a música, que de resto deveria ser bem colada a tudo que visse e cheirasse. Copiou de pronto já umas boas partituras e no bolso guardou a estória de um tal Mozart, menino precoce que encenara o filme da terça. Fechou bem os olhos e já em pouso acordou virado pra baixo como se o inverso do ar fosse a Terra-teto-chão. De pronto, a angústia da perda se fez tão forte, pois das partituras lhe sobrara apenas o tom dobrado em D.

Era uma sexta-feira, 29 de abril de 69, ano de nosso senhor. A mão de sulcos velhos, lhe enroscava os cabelos e tez, como que num agrado lhe pudesse em termo, fazer acordar sem de todo despertar. O amigo ao lado dormia e a voz a inquerir, que dele já não era, em doce apelo acerca do agrado ao show, que de fato tinha sido, mas que agora era um balet sem música num salão de veludo. Quisera estar em Paris, compondo a nota belle elegant para bordéis de neon. Acaso, sorriu, lhe indicaram o vago portão de luzeiro carmim que recebia bem a quantia que podia pagar. Mas que tudo não lhe fazia mais os bugalhos da inversa vida, pois com boa sorte e metade do filme se podia tocar belos tangos e quem sabe à mulher de fartos seios que a seu lado sorria, compor uma cantata e havia pra isso de tudo o seu tempo. A facada aos treze, que na chegada à cidade, da fuga ao campo desatada daria um tom baião de morte e o beijo roubado à Rosalba, naquela tarde de fim de ano faria tremer as cordas na balada doce deixada na língua.


"Ahh..." se lembrando dos tons e de uns sopros inquietos, também um pouco. Levantou-se da mesma, beijou a mulher das mãos, e ao ébrio amigo lhe deu o ombro. Caminho em chuva, quase seis, ainda noite, cantarolou em pedaços, as faixas da trilha em mente. Tentava e tentava, de olhos quase-fechando, colar os cacos da vida em disco. Julgou serem ruídos de LP os buracos que não colavam e postulou ser assim mesmo tais coisas por aqui na cidade. Mal sabia o Ernesto, que por todos lhe chamavam Nesto, serem os buracos o fundo e a orquestra fortuna que a cada batida entoavam os rondós e a tragédia de seus dias. Mal sabiam eles, pensou o Nesto, que meus olhos, que de resto já enxergam a música, repuxaram meu ouvido. E neles, mal o sabem, já posso ouvir pedaços do aceno ao porvir, que ao longe sussurram não ser mais, eu nesse assombro, um vazio a cantar "tragedies no more..."

quinta-feira, junho 12, 2003

Um dia, fim de tarde num estiramento de nuvens vermelhas, José Arcanjo dos Santos abre seus braços no alto da pedra. Seu gesto-espantalho é girado num encantamento proseado em si mesmo. "Nazinha, meu querer, do meio de ti o azulão voei, e por tua boca morreu. Deixo faca, foice e fel, derramo os braço por nosso senhor qui dipressa vem cum força e fé o nosso rumo já é dado. Que de mim reste o pó das colheita e o milho seja bom. Fico aqui, leite e mel querer, sozinho me vou ao pai todo poderoso agora e sempre." Arvoado, José Arcanjo assopra o ar, buscando um assovio sagrado. O rosto cor de terra erodida retorce a boca em gestos ossados enquanto os galhos vermelhos untam seus olhos de sangue em fundo amarelo. "Ôoohhh", diz a voz-vento de José, um rever-verbo ecoado. A mão estendida recebe agora o primeiro pássaro, tomando-o em ninho. Ao alto a revoada se achega num periricar inaudito. Dois, três, quinze, mil pássaros azuis arrevoam o céu num aniz bailado. Coração em pulso largo, José cantoria com eles ainda estátua. "Quizera bom meu rumo certim, esperar te vou buscar meu nim", mais um verso na ajuntação. O volteio mais largo no rumo da pedra agora é uma cruz em dobra voada por ninho. Círculo de vida em pruma espera, o Arcanjo ergue seu vôo, enevoado por asas e Santos, sobrenome José, agora é uma mão sem pássaro, que da asa agarrada em mãos, deixou a vida roubada se ir. Desce da pedra cagada de penas, volta a Nazinha, seu bem-querer, espirrar rapé pros azulão voá!

segunda-feira, maio 19, 2003

Enquanto alinhava os distorcidos fios da sombrancelha, lhe ocorreu a idéia de que seu dedo e mão estavam próximos de seus olhos. Dava para ver a luz embaçada entre os dedos e o anel que brilhava dourado, destacando-se no conjunto. O dedo médio e o indicador roçavam os fios como num cafuné desinteresado. Passou então a abrir os dedos e a fechar, cada um como se fosse um take de cinema. A brincadeira fazia ver as coisas diferentes e toda a velha conhecida prateleira de objetos agora era um mundo. Escalou livros, deslizou por lapiseiras, dançou no velho quadro, quase caindo pelas curvas da mesa. Pela porta da sala, inclinada agora em setenta graus, viu um fio correndo como rio pelo mapa carmim da parede. A parede dava para o corredor que dava para... lembrar do relógio rodopiando ponteiros a lhe esperar. De súbito lhe retornou a angústia de sempre, matizada agora com um apertar de olhos e contorcer da barriga. O tempo era dinheiro e o tempo naquela eternidade de novos olhares era nada. Rotulou tudo aquilo como inútil e se dispôs a contar quantos segundos perdera na sua existência. Tantas coisas poderia ter feito naquele momento imperfeito. De tudo lembrou do sol e suas vizinhas estrelas. Alpha Centauri, Sirius, Alpha, Teta, Gama... das estrelas passou ao infinito. Rodopiou a cadeira e se sentiu imerso no eterno, frágil como não podia deixar de ser. Sentiu então a inutilidade de tudo e o vazio de estar ali a roubar segundos de si mesmo. Segurou nas mãos o ordenado relógio, puxou 5 minutos do ponteiro para trás. Voltou para cadeira e ficou a imaginar um jeito de dizer a si mesmo que tudo o que de fato tinha sentido e de fato o agradava, não tinha utilidade neste mundo. Abençoadamente dormiu, lembrando por último que quando criança gabava-se sempre de dizer aos coleguinhas de sala que o infinito, por ter início, era sempre menor que o eterno.

sexta-feira, maio 16, 2003

E a fortuna conspirada com as nuvens, num arrozoado saber matutino, uniu o magro rapaz chamado Egoísmo à velha e gorda Comodidade como se fosse então um casório de fim de tarde, destes de vila escondida. Os dedos entrelaçados se amainavam um ao outro, segurando a vontade da cama vindoura. Não saíram do quarto, é certo. Ele, paixão pra dentro e olhos nos pés, sorriu como a decretrar novos planos secretos. Ela, amaciado saber, acariciava os cabelos do moço. O esquálido coração se deitou no flácido seio da amada. Barriga aberta e umbigo exposto, Comodidade recebia carinhos em círculos e regorgitava mesas e camas passadas num relembrar de prazer. As peles eriçadas copulavam como ondas. A velha moça, por cordial relutância ao início, abrira suas pernas à lascívia inquieta daquele que era um só querer. Um único toque de cordas vermelhas dedilhava notas sem pudor a cada beijo. O Egoísmo penetrava fundo na aberta Comodidade que a cada investida se dizia sua. E mais, e por tanto o mais ao querido gemer, ao tempo de desmaiar gritara amor. A tarde ia longe e era tarde já o horizonte dos desejos a fazer. Da cantada união, rugiu um filho, em inesperado susto, cujo gritar era uma vazia e inaudita dor. A janela se abriu, um rapaz qualquer, uma moça qualquer se voltam para a rua. E por tudo, olhando o vento e os passos, viram o dia e a morta paixão dentro de si. O rapaz desenhou um círculo na janela enquanto pegava o telefone com a outra mão. A mulher, pés descalços, lambeu a página do livro de si mesma e comprou flores. E a fortuna conspirada com as nuvens, num arrozoado saber vespertino, uniu o magro rapaz chamado rapaz à florida moça chamada moça, como se fosse então um casório de fim de tarde, destes de vila escondida.

segunda-feira, maio 12, 2003

E no terceiro dia de outubro ao norte da cidade de Hersell, foram orar pela morte da palavra. Ao chegar ali, uma virgem, uma prostituta e uma ocupada de pés calçados eram vistas em mármore negro se tocando pelas folhas. A virgem era chamada Helena e morrera ajoelhada pelo frio da espera. A prostituta, cujo nome era Bela, tornada velha empregada, de braços fechados lançou-se num amanhecer. A terceira cujo nome sempre se soube, vivera na boca e na memória de apenas um em Hersell. Cada uma teve seu tempo e glória, carregadas por esperanças, amanheceres e bocas. Na hora, quando todos voltavam os ombros ao horizonte. um ponto cristalino se joga do céu formando o caminho de lágrima nos olhos de Helena. Em bailado marchar, um jornal tocado ao vento vai em cuidado ocupar as vergonhas da moça de calçado pé. Deitada olhando para Deus, virada para o povo de Hersell a última boca de mármore sorri. E da oração pela trina morte fez-se um verso de estertor, partido em quatro linhas de querer, feito poema de criança, ressussitado porvir. As pessoas se foram, as estátuas também.

segunda-feira, abril 21, 2003

Formando um quadrado, quatro banheiros de laje antiga branca, portas de madeira dessas que não chegam até o chão e uma descarga para ser puxada. E quando a usávamos, algo bem diferente acontecia pois de banheiro aquele quadro não tinha nada e era de fato um elevador. Subíamos uns 8 andares naquele prédio dos anos 40. Ao chegar, logo uma cortina de veludo azul nos recepcionava. Dava para escutar a música transpassando o pano de cortina e logo já se viam as pessoas junto à entrada. Era uma mistura de bordel com clube de dança. "Olá Flávio, entra, entra, pega uma cadeira...", uma mulher me recepcionava. E ficava ali a ver as coisas acontecerem. Poucos dançavam, mas havia muita conversa - intrigas, futricas, jogos de corpo e imagem pelo salão. Ao fundo, havia sim dessa vez um banheiro de verdade onde as tais intrigas e negociações continuavam seu ritmo. Me lembro de ser um frequentador semanal deste lugar, me lembro de ser conhecido por uma boa parte das pessoas mas me lembro também de ter sempre a sensação que eu era um estranho e que precisava ainda me apresentar a quem ali estava. Gente do colégio, do grupo de jovens, dos amigos das noitadas e gente nova que conhecia os meus amigos e não a mim...ah havia os meus primos também. Em meio a isso tudo uma doença começa a tomar meu corpo. Vou ficando cada vez mais fraco entre idas ao médico, retorno ao clube e visitas ao hospital. Eu não sei do que se trata, mas sinto que é algo que me enfraquece pelas entranhas. Vejo os olhos de tristeza e de esperança das pessoas, olhos dos que sabem o olhos de interesse daqueles que não sabem.

Num determinado dia, em visita ao médico, vi um auxiliar dele entrar com um aparelho estranho parecendo uma régua com uma curvatura abaixo. Me abrem a boca com o tal aparelho e observam lá dentro. Sou levado ao hospital, que era logo ao lado. Lembro que isso era já previsto - a tristeza das pessoas no clube, cada uma no seu canto e jeito, me dizendo palavras e me oferecendo o ombro numa mistura de carinho e espantamento. Lembro-me da palavra "novocaína" e um sujeito que reagia a ela, ficando "doido" querendo pular do caminhão onde imaginava estar. A sensação de ser cortado e de me ver marcado ao longo de possíveis outras cirurgias pela vida e de sempre querer voltar para casa há poucos quarteirões e sempre me ver impedido. Eu senti tudo acontecer apesar de não ver. Ainda enfaixado, de terno marrom e chapéu na cabeça vou me aprontando como um velho aposentado. A dor é daquelas que na verdade são de um "não se encaixar" no corpo. Me apronto todo e agora estou lá novamente abrindo a portinha do banheiro de baixo. Subo, abro a cortina, entro no salão. Poucos me reconhecem, me vêem como um velho ao longe. Me lembro de três mulheres num grupo afirmarem - "mas... mas parece um velho!" e consternadas abaixarem a cabeça. Me encho de raiva e mesmo sentindo as faixas apertarem a região da cirurgia, corro e deslizo pelo salão. Levanto o chapéu e como se uma nuvem sumisse da visão das pessoas, retomo minha imagem original jovem e cheia de vida. A alegria retoma. Nos braços, tomo uma daquelas três mulheres para dançar o bolero da vez... e escuto ao fundo, no banheiro de cima, a velha quermece das intrigas de sempre... mas vá lá... acordei... este foi o meu sonho da madrugada.

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