★ Flávio Souza Cruz ★

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segunda-feira, novembro 24, 2008

Uma velha mulher, seu canto e suas odes. Desenho um arco no chão e me cubro de suas lembranças. É tarde — me parece que a vida já vai se pôr... Uma voz grave recita versos em outra língua. As palavras me cobrem a fronte — circulam como chama em meus olhos.

De joelhos, aperto a terra nas mãos e vou sentindo o sangue a pulsar em meu pescoço. Observo acima e vejo as escadas coladas à parede. A mulher está lá. Seu canto está lá, recitando para a fumaça das nuvens. O horizonte vermelho vai se borrando ao final dos prédios. É tarde — me parece que a vida já vai se pôr.

Me lembro da última palavra não-dita, do último olhar não-visto, da última vida perdida — "da palavra aos olhos, da vida à terra, da terra ao coração..." O sangue pulsa em pesados coágulos redondos. A noite está vindo, a janela ainda aberta, meus olhos para cima... meus olhos amarrados, só nela a pensar.

A janela abaixo, meu olhar para cima. A tarde caindo, a velha senhora. Janela fechada, o olhar jogado à terra. Alguns passos e mais a sombra, um sapato e nada aquém... foi a vida a esbarrar nas minhas costas. Não houve fim e nem um começo. Do alto à terra, do quarto à rua, do canto à mim - somente o perpassso.

quarta-feira, novembro 08, 2006

"Na lúgrube cela empoirada dos meus cuidados, há um quê de folhas verdes que teimam em se erguer. Os galhos do sustento são como linhas de cobre entrelaçadas. Perfuram o céu, perfuram a terra, perfuram a mim. E da transfusão colhida, me dou ao prazer do encharco. Três linhas a menos e nada a dizer. O texto se come às avessas. Aperto a esponja que sou à espera da fuga dos insetos. Uns sempre ficam, maledicentes. E assim vou, caminhando com as folhas de esperança, o remoer dos galhos e o aspergir dos insetos. O passo é vagoroso, o mundo é grande, mas eu o mastigo."

Zidur parou à porta do amigo. Bateu três vezes - o aviso combinado. Um sorriso acolhedor aparece. Entram. A poltrona serve agora como o espaço da lonjura próxima. Zidur fala então das últimas músicas que ouvira, conta sobre a vontade de ir ao jogo no domingo e aguarda ansioso pelo cafezinho servido. Ele repara a atriz gostosa na TV, elogia em eufemismo. Sorri. Um inseto abre as asas lá por dentro. Coloca uma perna sobre a outra, o tempo passa. Jogam cartas, buraco, quem sabe. Gritam, bebem cerveja. A patroa do amigo traz uma porção de pastelzinhos portugueses. Comeram, gritaram, riram e beberam mais. A porta se abre, entra o Cláudio, outro amigo. Fecha-se uma roda. A noite prossegue, o papo é bom. O amigo mostra as novas músicas e agora temos um misto de debate a apreciação. Um pouco mais quieto, Zidur sente o som de Ute Lemper e relembra algo não vivido. Duas, três horas da manhã, hora de ir. Despedem-se.

E tudo fizeram sem se ver. E tudo fizeram como que em um breve tocar de galhos. Na hora do café, uma folha do amigo caiu. Olharam-na, mas ninguém a pegou. No prosaico encontro, era melhor o pastelzinho a comer a vida. Zidur, discreto, fechou os olhos e sentiu o percevejo lhe correr nas costas.

sábado, junho 03, 2006

O tecido de carvalho da mesa recoberto por uma poça e a visão do paraíso. Eleudina abre os olhos. A íris em flor, formada em tons de centeio e milho. A pupila negra arrematando a íris, o globo ocular recortado por línhas esquizóides de sangue. A cara alegre, os olhos abertos, o olhar daqueles que sabem. Abre o piano, a mão lânguida escorrega, toca - duas teclas, o pedal. E de súbito uma fraqueza lhe vem como que a tontear pela sala. Sons de cordas, arpejos, toques longíncuos dos anjos. A cabeça rodopia, a tonteira lhe derruba junto ao órgão. Segura-se, respira. Olha para as gotas e a poça e a mão. Eleudina inspira. O peito esguio de tez moura entreaberto em farto decote é inflado num solfejo. Os lábios se fecham como uma boca de desdém. Olha para o teto, a luz amarela, relembra a poça. Tateia de novo o carvalho, sente o caldo grosso.

Quando pequena, haviam lhe dito para não brincar com as facas da cozinha. Mas desde então, como receituário indicado, sempre roubava uma delas. A "Amélia" era sua preferida. O cabo quebrado lhe fizera trançar cem cordas em volta. Mas o corte era bom. Boa de segurar, boa de cortar. Mas acima de tudo lhe divertia enfiar a amélia nas sacas de feijão que a tia comprava a cada semana. Seus olhos orbitados contemplavam o brilho, a língua lambia o corte da lâmina. A faca entrava, saía, mergulhava. Era uma repetição fálica, quase-sabia. Vários tapas por isso recebera. Tapas no ouvido de perder o rumo. Chorava, corria, mas a faca ninguém pegava. Era dela, só dela. Amélia dormia em sono de vigília, um olho meio aberto, sempre. Amélia ao lado, à esquerda.

Por vez surgia-lhe o espantamento. Um quê de não saber o propósito das coisas. E já não sabia por onde e nem quando viera a paixão por Amélia. E já não mais... no esquecimento também queria-lhe ao lado. Sua filha lhe gritava: "Mããe! ôh minha mãe, larga isso, larga dela". Mas corria. Eleudina abria os olhos, sorriso daqueles que sabem, voltava ao quarto. Ajoelhava-se, orava, sentia os ossos cutucarem a pele no ombro. "Aaaahh maldita, pensava! Éh! É ela o diabo! Tá me querendo! Tá te querendo!" E então abraçava Amélia junto ao peito e dançava. Aaaahhh como Eleudina dançava. Os tacos carcomidos dos vários rodopios como testemunhas eternas da insava vontade. Mas... "sshhh ninguém pode saber! Vocês! Fiquem quietos"... O dedo bravo apontava para o chão.

O marido a deixara há quatro anos. Não ligara. Acordava sempre com o travesseiro ensopado, mas nunca deu a isso um porquê. "Vou cozinhar, éh!" Mas de novo, como uma dor agora doce, a língua molhada engasga, a pele fria. Cai.

E de súbito a luz da porta aberta, Amélia, a filha com ela junto ao peito. A luz e um corpo. Nada mais.

sexta-feira, março 24, 2006

"Uma cor violácea, uma cor que viole a negritude do humor, que a violente e transforme em aberta rosa os lábios do olhar..." Ele pensava em rimas tortas e pedaços de versos, perdido num redimunho de imagens. A rua cinza, concreto escuro, desfralda num aqui-ali de angulares pedras. A chuva cai em pingos de água mole. Pedaços de flor lhe cercam pelo chão e o banco. Pedaços de violácea cor. Ricardo estende a mão, um pedaço de braço à sombra do paletó. A água e uma pétala púrpura, pedaço de rosa aberta lhe cai pela face. Lembrou-se da aula e da perda, da semana e da noite, maldormida. Malcomida vida de não-fazer, mal agrúrios retocados de esperança. A mão desliza a face áspera como o dia desliza o corpo áspero. Uma ruga ergue a testa enquanto o pingo, grande, lhe cai ao lábio. O gosto terra, meio água-suja, meio... a cor, violácea... seus pensamentos retomam o rumo do verso. Teima em terminar e busca a palavra final. Quer a custo violar o rumo de seus passos, ali parado. Emenda um verso, recorta a memória, engole em seco.

Ricardo, de sobrenome Cruz, não está só. A perda da semana lhe acompanha, mas também a chuva e também o minuto agora em paz. Aperta o lábio, morde a boca, responde enfim ao poema da pergunta. A caneta escreve, o papel aceita. "Meu verso último não rima, nasceu violado, mal enfeita. É um lírio, estranhezas em receita, um mar de rosas, uma flor qualquer, desejo, vontade de me jogar, vontades de ti querer, querer nos girar, virar, morrer, matar... solilóquio só de afetos a sangrar o dia, rompendo as sombras do humor."

O livro se fecha, mal poema, comentários a fazer. O passo segue, a rua molhada. Mas a violácea flor saiu dali, grudou no paletó.

segunda-feira, setembro 19, 2005

No andar dos ponteiros

"Enquanto eu sei, das horas que passei, me perdi da vida." disse. "Nas horas, tempos, relógios e maldições mecânicas me joguei" pensou. "Os amigos, não vejo! Quem sabe o Carlos, ah é mesmo, vou visitar..." Mas a mão esmaecida em fraqueza pousava sobre o ventre. Os olhos eram cirrus cumulus, cerrados, mínimos. Pensou não ter a disciplina necessária. Sabia-o, na verdade, não ter. Voltou-se para o pulso e já ali podia medir o influxo respiratório. "Eu podia conversar com ele", pensou alto. Mas a conversa tornara-se magra. Sopa de letras artificiais, carícia sem mágoa. "Eu fui ontem ao shopping!", disse. "Chegou a nossa hora.", escutou. "Te espero na próxima, ok?!" "Semana que vem", respondeu. "Semana, que nunca!", decidiu. Lembrou-se do beijo que este homem lhe dera, ano passado. Não pelo beijo, mas pelo ritual inesperado. Teceram-lhe folhas de esperança, contaram verdades, poucas. O sapato escolhe a escada, passa um rosto, uma jovem. Queria contar para Ana sobre tudo aquilo, o pensado. Cansara-se das palavras da boca, queria-as ditas nos olhos. Abriu a porta, olhou o céu, contou os passos. A rua estava em sol, mas sua alma chovia. Sete gotas de dor, onze gotas de mágoa. Mas as cílios, aqueles do olhar, abortavam o rio. Sorri, um leve repuxar para o lado torto. E sentiu ser destes mistérios sem lógica, o momento da hora. Revolveu sobre a genial criação do esquecimento. Sentiu ainda mais fortes as lembranças. O cílio molhado. Pede um copo d'água. Delicadamente dissolve um óleo para as horas. "Lá pelas oito estarei bem."

Uma criança sorri, corre, abraça-lhe a perna. O olhar abaixo, o sorriso dela. O olhar acima, o céu. "Senhor, obrigado!" O choro, o riso, agora é tudo. Soluços fartos, a cara boa. Sentiu de tal forma um clarão, um insight da tarde: "as horas, Ana... as horas são capazes de saltar..."

quarta-feira, setembro 14, 2005

O Calamundo

A concha é o refúgio do Calamundo. O Caramujo é um bicho assaz conhecido. Já o Calamundo é homem-mulher-bicho. A porta se abre, o bicho sai, corre, arregala os olhos, fecha. Ana Eduarda é o Calamundo da minha estória. Saiu hoje pela manhã. O céu era nublado e até gostava. Não lhe esquentava as vistas, de fato. Por que assim, tudo lhe ardia, até o céu nas vistas era um grito a seus olhos. Saiu calada e meio moída, ressaca da terça. "Ana querida, você já falou com o Celso, hoje?" "Mas o Celso que se dane", pensava ela. Em procissão de velório caminha para a sala, entreolhada. O barulho tá lá, na véspera já doendo. E vai, e entra, escuta, lhe gritam, lhe dói. O Celso era um. A Maria veio depois. Bem sentada, teclado à frente, a mão quase gélida toca o ombro nu. "Aninha, você assistiu o Artaud?" "Mas que inferno é este? Que caralho de Artaud?", range os dentes do estômago. A mão insiste em ficar, uma lágrima lhe esvai, suplicante. A janela está próxima. Sete sons, sete trombetas, sete gritos, sete sirenes. O número sete, perfeito lhe diz que o mundo de lá é um código mal feito. Inspira uma vez e mais um pouco. Respira. Um descanso breve. Telefone. A mãe lhe grita. Esquecera o toucinho, esquecera a banana. Definitivamente este era um dia comum. Pensou em asas de anjos pelo meio da sala. O escritório prossegue, passo mais rápido que o ponteiro. Cinco minutos para uma, cinco minutos se esparramam pelo tempo. Pronto, o almoço é agora. Ana Eduarda desce, a rua, a confusão aflora. O mundo lhe é muito. A esquina é tudo. O mundo é a regra, mas a regra, via dos fatos, grita muito e fala alto. Falta-lhe algo, falta-lhe muito. Ana Eduarda agora é sossego. Mastiga docemente a omelete do Sr. Evaldo. A lanchonete velha, o cafezinho sujo ao lado. Mas abençoada, Eduarda come. Sua concha é o mastigar de ouvidos fechados e nariz atento. Deglutindo calma os gritos das almas, ruminando o mundo. Cala-te mundo.

terça-feira, setembro 13, 2005

Respingos do Querer

Meias rasgadas respingam cinzas, restos. A moça em tom preto chumbo, a pele em claro, túmido vermelho. Eulália, nome reptício, revolve a relva da noite. Sente, a delicada mão, o esmero no toque. Saudade em prosa, animosidade no verbo. Eulália, nome vívido, é toda sangue. Pensa no abraço, mão nos ombros. A janela, uma estrela, um quarto logo abaixo. A cinza caiu, a esperança fumaça. Nove andares abaixo um velho resmunga. O amigo, amante dorme. Traços nóduos marcam o indelével lenço. A perna esfria, a alma revoa. A meia é o quase-envoltório da vida, prelúdio do sexo. "Morre Eulália, mata teu dia!"

O homem acorda às três, nome esquisto, cabeça doendo. Nove andares abaixo, a mulher está quase-nua. Eulália deixou recado, volta amanhã. A vida respinga engasgos do querer. São troços, são meias, verdades, são traços.

quarta-feira, março 09, 2005

Escutei lá pelas bandas do sul, da boca de um velho escritor, uma lenda sobre as mulheres. Conta a estória que elas, em verdade, são seres divinos, são anjos aqui na terra. Do conto à verdade, para sabermos da estória, num maior tanto, é preciso que nos salvemos do encantamento.

Miguel chegara em casa e ainda era cedo. Reclamava do dia, reclamava das horas, reclamava dos pães à mesma. Na grosseria das mãos e força nos braços seu corpo, da camisa azul ao sapato negro, um acalmar foi se dando. A mulher lhe trouxe a bebida dizendo "quieta teu corpo ao meu, bebe teu perfumado vinho." E ele dizendo "eu te quero, mas recuso o afeto." Ela sorrindo e se jogando corpo e alma, como se do nada os pudesse separar. E do seio a boca em lábios, as mãos em dedos fez um todo quase nó emaranhado. Morderam-se. Comeram-se, amaram-se. Ela em tudo, ele em partes. E lamberam-se, cravaram-se, amaram-se. E ele dizia "vem"; e ela dizendo "mais"; e ela dizendo "aqui" e ele dizendo "mais"... E no arrumo dos corpos em derrame se deu em caldo a profusão de Miguel, urdido em grito de exaustão. A nem tão linda, mulher deitada, embaixo, o arfar feito narina e estorpor. Respiram, arfam. Miguel fecha os olhos. Uma asa penetra a cama. Apruma, corta o véu. Abre-se, velada, lânguida asa. Voa. E ao fundo, sente-se o cheiro de um café com broas, um resquício da tarde.

Os olhos entreabertos, a sombra nas pálbebras, a luz e agora sombra. Um vulto, uma asa. Miguel ao lado, e a mulher do outro. Ele a olha e jura ser ela um anjo. E por fé, agora sentado, lençol arreado, Miguel a vê - costas abertas, pedaço de carne, pedaço de gente, pedaço de asa.

Acorda, as mãos na cama. Volteia a cabeça e diz: "Isaura, sonhei que tinha me esquecido de uma coisa muito importante. E eu queria... eu queria te dizer..."
Mas o encatamento trava seus lábios, no abraço de Isaura, no aconchego dos dias. E os anjos, escondidos na escada, bocas em dó, em prece arfaram - amém.

segunda-feira, março 07, 2005



No encontro da rua Augusta com a praça do Rosário número cinquenta e dois, Wanyr, passo altivo, se defronta com o Sr. Samuel. Em cordial e afável sorriso os dois levemente abaixam a cabeça. Samuel, inclinado para a esquerda, um gesto ainda com o braço. Se estudam. Wanyr, olhar concêntrico lhe mede olhos, boca e rugas como se o vento lhe dissesse coisas. Desenha na mente o rosto e percorre cada traço. Lhe intriga o Sr. Samuel.
- Bom dia.
- E já quase noite, emenda Wanyr.
- Saindo?
- Chegando.
- Então um abraço.
Wanyr, braço levemente erguido, um ultimo aceno.
Não entendia de fato este Samuel. Sempre o encontrava nos mais diferentes lugares, nos mais diferentes caminhos, nas mais diferentes casas. E nada disso lhe fazia sentido. "E nada faz sentido", pensou alto. O mundo de Wanyr era um quadrilátero quase-perfeito, há de se ressaltar. De fato, Wanyr e o mundo se davam muito bem. Ele se sentia um escolhido e o mundo o retribuía na sua esperada dignidade. Wanyr andava pelos corredores e quartos, pelas ruas e casas, sorriso sempre aberto, levemente esticado para a direita. Esbarrava às vezes nas plantas e no pé, mas era um hábil observador. Adorava e tinha obsessão por quadros, molduras e papéis. Ele media o mundo e media as pessoas. Enquadrava a vida e emoldurava as pessoas. E assim, Wanyr, dia-a-dia escalava papéis. E assim dizia - "aquele é aviador, este, aviário, já aquela, nariz angulado, bancária de balcão". O mundo de Wanyr era belo pois nos quadros a vida era comportada. E assentava à tarde, satisfeito com as vidas emolduradas na parede. E de súbito apareçera Samuel, aquele que a tudo fugia e lhe angustiava. Buscava e buscava molduras e papéis para Samuel, mas em nada este lhes cabia. Pensou nos batistas, pensou nos espíritas, pensou em ateus e até budistas. Nada e ninguém lhe salvava. Foi assim então que Wanyr, parado naquela tarde de domingo, chorou.

E das mãos lhe nasceram folhas. De Wanyr as pernas formadas troncos sangraram os tacos da sala. E a terra misturada ao musgo lhe subiu com os bichos da floresta. As folhas se fecharam e lhe taparam o corpo. E no escuro, agora dentro, Wanyr descobriu que agora, desde sempre e muito antes - ser apenas e não mais, um cara na multidão, um cara cego.

sexta-feira, março 04, 2005

"A morte está cansada da morte. O dia está cansado do dia. A morte está cansada da morte. O sangue está na cansado do dia." Tropeça. Cai. "A morte está cansada da morte. O dia está cansado do dia. A morte está cansada da morte. O sangue está na cansado do dia.", repete. A boca seca num esforço, um pigarro.

Em casa, mãos limpas. Sentado. "A morte está cansada da morte. O dia está cansado do dia. A morte está cansada da morte. O sangue está na cansado do dia." Mas nada irá impedir a vida cansada de Maria de Lourdes que se esvai, quase-morta e nem mais um dia.

quarta-feira, março 02, 2005

Um torpor exalado em fel. Mulheres em pranto e um doce ar de canela saindo pelo quarto. O movimento do corpo ajoelhado pendia em pêndalo num ir e vir que beijava o chão e se erguia para o céu.
- O que pedes?
- Por ele.
- Não o sabes ainda?
- Saber?
- Ele já não mais está.
E de pronto, a dor foi mais intensa e seu corpo extremeceu. Vozes penetravam seu corpo e como adagas em curva lhe desfaziam na volta. "Ele já não mais está"..."Ele já não mais está"... Agarra o pano da cama, chora. E cada gota é um dia, cada rosto, um olhar, cada olhar carregado de vida a escorrer. As mulheres chorando, o quarto em pedaço. O corpo retorna a si mesmo, encolhe. As mãos em prece, o joelho como feto. E quisera então naquele momento gritar tudo e se dizer cristã. Perdoar-se da mágoa e se molhar de santa. Quisera então naquele momento desamá-lo em tudo e se dizer ausente, rogando pragas por se sentir ali. "Óh, amada", dissera ele, em compaixão, "Que tudo o fazes pra me amar, e nada tenho além de mim." "E nada tenho", além de ti, "sempre incompleto", agora em mim. E a doce mão do amigo lhe pousa o ombro e tua calça agora é pouso pra teus olhos. "Abraça-me!", os dois dizem. E uma música ressoa no quarto, salgado agora, na largura do céu.


* Montagem feita com fotos de Calvato.

terça-feira, março 01, 2005

Ele procurava a voz, mas a voz se escondia. Ele procurava por uma prova, mas a prova se escondia. Ele teceu mil palavras e as enrolou num tear de vontades em espera. A cada dia tecia e esperava. Pedia e clamava - "fale comigo, me mostra que escutas... ouve-me, retorna-me!..." Mas a voz não vinha. Ele procurava a voz, mas a voz se escondia. Ele procura um tremular, uma batida no vento, mas o ar não ardia. Procurava pelos cantos, mas o vento era apenas castigo, não era vida. Do tear fez teias para lhe abrigar da solidão da voz, dos dias. Mas a garganta clamava e a cada dia à parede pedia "em favor, por mim, fala comigo!" As semanas se refaziam em trilha, mas a voz se escondia. Um belo dia, dá-se o sinal - o telefone toca - dois acordes - ela diz, femina, finalmente, e o tom é carmin - "bom dia, querido..." Mas ali, no assombro do toque, do ouvir em riste e coração cansado, sabia ele, não era ela, aquela voz.

Foi noite, capítulo segundo.

sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Amanda Carla de Souza é leitora de borras. Suas mãos, o instrumento de tocar o mundo. Seus olhos, miragem borrada. Seu mundo, quatro quadras que retornam em voltas a sua una janela. Aos quinze, Amanda, do cigarro o prazer lhe deram. Dos vários descobertos, na brincadeira dos dias, sentia ela, luz e calor, torpor e tesão, da brasa e flâmula etérea a bailar quando a noite chegava. Sentada, a janela aberta, pombas voando e os sons do prédio. Lá embaixo, a mulher do trezentos e sete canta. Gritos, gemidos, crianças brincando. Toca Amanda o rádio, suas mãos escorregam pela cadeira. Lembra-se do Márcio, amigo fraterno, agora cansado. Pensa nas frutas, pensa na mãe.

As pernas abertas, os cílios em cópula. Seus lábios se tocam e a língua os molha. Pensa no Márcio, amigo, fraterno, pensa na vida e a cama por fazer. Lá embaixo, a música tocando. Palavras em inglês rodopiam na mente. Aperta as mãos, espreme os olhos. Revira-se, revolta-se, sente agora o dia sair num recuperar de lágrimas. E de tudo, cínica toca, enlamecendo o vidro com as lágrimas de ontem. Cinco minutos lhe bastam. Agora sorri, olhos mansos, cigarro acabado. Lá embaixo, as meninas continuam. E a música também. Trezentos e sete cantos, Amanda os sabe de cor. Sua língua era contar, dos dias passar.

[Ouvindo: Satellite of Love - MDH Band - The Million Dollar Hotel (4:12)]

domingo, maio 25, 2003

Pedro Chosnovsky, 45 anos, comerciante. Assinou os papéis, conferiu de novo cada palavra e teve apenas a dúvida se iria querer receber o boletim de novidades. As duas vias foram entregues à moça de sorriso rosáceo, que lhe entregou um comprovante. O salão estava cheio e as pessoas andavam preocupadas cada uma com seu norte. Imaginou se elas sabiam realmente que norte teriam. Olhou de novo para a moça, que novamente com um leve sorriso abaixou candidamente o rosto em reverência chinesa. Virou-se para a porta de vidro fumê, caminhou. Dezenove passos deveriam dar, mas a cada movimento de suas pernas, cada passo era mais difícil. Os dois primeiros foram de impulso, mas depois cada tentativa de levantar os pés do chão era como uma luta hercúlea. O ritmo do mundo continuava o mesmo. As pessoas andavam normalmente. Não o viam, ou melhor, não ligavam em ver. O esforço se traduzia em dor e suor. Seus músculos fibrilavam, se contorciam fazendo mãos e pés se espalmarem. Virou para trás de novo na tentativa de chamar a moça do balcão. Ela agora atendia uma senhora de sobretudo verde, não tendo olhos para o seu drama. Parou. Respiração ofegante, pulso descontrolado e uma sensação kafkaniana de não se entender. Lembrou-se de novo que deveria chegar ao norte e que a porta estava agora a apenas 3 passos. O ar de fora vinha em breves rajadas a cada pessoa que entrava e saía. Pegou um cigarro, mexeu nos bolsos à procura dos fósforos. Deu conta então que parado conseguia fazer as coisas, que estando parado nada lhe impedia de se movimentar. Os pés não saíam do chão, mas podia virar o tronco, abrir os braços e fazer o que quisesse. Tentou agarrar a primeira pessoa que passasse. Um rapaz foi o primeiro a lhe dizer:
- Pois não?
- Tire-me daqui, por favor. Eu não consigo mais andar!
- E por quê gostaria de andar?
- Ora, por quê? Isso é lá uma pergunta? Eu quero andar! Me tire daqui!
- E se eu lhe tirar daqui, o senhor voltará a andar?
A profusão de perguntas somada à perplexidade inesperada lhe fez terminar a conversa com um "obrigado, me desculpe". O rapaz se foi como os outros, deixando em Chosnovsky uma boca aberta a olhar para dentro. Ele tinha de chegar ainda às 6 para pegar um lugar vazio do outro lado da cidade. Incapaz, no entanto, de dar três passos por conta própria, se ajoelhou no ladrilho de mármore xadrez e se pôs a chorar. Imaginou que se pudesse esticar seu corpo até à fresta da porta, talvez tivesse uma chance. Tentou se ajeitar para o lado procurando o melhor ângulo e começou a se arrastar. seus braços eram entrecortados pelos pés das pessoas. Ao chegar à fresta da luz, sentiu a dor de um sapato a lhe esmagar o dedo. O sangue correra por dentro como flecha, trazendo uma onda inflamada de dor. Sentou-se. Desistiu de tudo e todos, fechou os olhos. Achou melhor deixar o tempo passar. Viu as horas, as pessoas, novamente as horas e não mais pessoas. A luz da porta se foi, trocada por uma lâmpada perdurada por horas. Depois o nada e mais ninguém. A moça do balcão também se fora. Rodeou um dia e por fim viu surgir de novo todo o ritmo, toda a folie da véspera. Volteou os olhos e lá estava ela, a moça de sorriso rosáceo agora lhe sacudia os braços. "O quê?", gritou.
- Seus sapatos, senhor!
- Heim? O quê?
- Seus sapatos! O senhor não vai desamarrá-los?

quarta-feira, abril 30, 2003

A copa da árvore compunha a parte das minhas membranas entremeadas por um sol reticulado de nuvens. Cerrei os olhos em busca da sombra dos meus causos. Respiração e olhar se inspiraram num tragar de lembranças voltadas para o chão. Levantei-me e olhei de volta o raiar púrpuro da tarde que se despedia. A vida continua seu ritmo ininterrupto de cores, enquanto as lembranças tinham gosto de sépia. Olhei a curvatura brilhante da fruta nas minhas mãos e dela se desfez em pedaços agora rasgados por meus dentes. A boca rumina pedaços de idéias a cada volta. Você está lá entremeada por desejos, tijolos, gramados e sorrisos. E tudo então se volta como ritmo cadenciado pelo movimento de cada parte da face. E cada parte é dor lembrança e pétala jogada. Ao fundo, o barulho das folhas revoadas se encapotando pra noite, ao dentro Renato canta uma mistura de Legião e versos meus. Os dedos se tocam como se quisessem tirar do outro um roteiro de trabalho. A mesa está posta num xadrez e prato só. Volteio de novo o corpo e o horizonte lá me espera a interrogar sobre o dia. Como a prestar contas, os braços e mãos espalmadas a altura do queixo se entregam à disposição de um tempo que se abre, negando a traição pelo que se foi. Eu me desfiz do dia, confessei. Me refiz à tarde, e à noite, beijo seu, me molhar de vida é o que peço.

Voltei ao quarto das luzes acesas, rezei três palavras com a língua e lábios se fechando. Cada minuto se eterniza numa ópera bufa incansável por não se terminar. De me cansar das horas internas fui contar os ponteiros da lua nascente. Imaginei arte pop de um The Cure misturado a Pumpkins desenhando babados e bocas vermelhas no amanteigado seio do céu. E me imaginava em assombro por haver tudo ali. E por estar tudo ali, a caixa de lembranças carregadas no pulsar dos meus ossos e a caixa de esperanças de um céu desenhado por música. Me entendi como céu, me vi como tinta pintada no céu daqueles que perdi. As cores rosnavam como feras, deslizavam como anjos e inchavam em orgasmo. Abri os olhos e o azul negro agora era tudo. A primeira estrela aparece, mais uma e outra mais. Um carro passa logo abaixo na estrada. Olho para a mesa, volto a comer. Garfos e facas retrançam uma velha ladainha cantada por velhas a me ensinar sobre sacos que ficavam em pé. Uma mão toca meu ombro, minha pele instilada por cheiros a pressentir. Está na hora, Carla Maria, me diz a voz. A porta se fecha e fico a contar nas linhas da mão se a sexta hora da lua já havia apontado nos olhos dela, naqueles que um dia me visitaram como boca de pintada lua. Fechei os olhos e o púrpuro raiar agora é tudo.

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