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terça-feira, novembro 12, 2002

Esperei por mais uma hora. Ela devia ter ido à produção da peça de teatro ou visitar a Clara. Pensei em ligar, mas uma certa angústia me impediu. Aquele dia já estava por demais sem sentido e assim desisti de vê-la. Voltei para casa. Meus braços cansados me pesavam uma idade que não tinha. Me sentia como um velho. Como poderia coisas tão fúteis me tirarem tanto do sério. Ela realmente mexia com meus sentimentos. Não sabia como, eu que era tão tranquilo, me deixava me afetar. Olhei para a sala e para variar estava um horror. Só as mãos de Anna para me salvar daquela sala. Ai, ai - lá está ela de novo em minha cabeça... Abri a porta do corredor e Carol, minha gata veio correu logo a se enroscar em minha perna. "Hum, vamos ver o que temos aqui aqui para comermos, gatinha!" Um pedaço de presunto, duas maçãs, iogurte e o leite ¬ nada da janta, para variar, pensei.
Me lembro dos tempos em que eu gostava de olhar para o horizonte ao final da tarde. Os carros passavam pela rua de fronte à varanda daquela casa de meus 6 anos. Pelo vão da escada que dava para a rua, eu ficava contemplando a vermelhidão do céu que inundava a cabeceira dos prédios. Lá ao fundo, brilhava a estrela vermelha de uma antena. Eu cerrava meus olhos até o máximo na tentativa meio louca de transformar aquela luz numa estrela de verdade, imersa num céu vermelho. E tudo aquilo me dava uma sensação gostosa de melancolia que eu não consigo descrever como era. Eu sentia um aperto no peito, mas ao mesmo tempo era bom, gostoso. Meu pai já estava por chegar e logo viria a janta. Era ao mesmo tempo uma sensação de paz e reconforto. E dessas lembranças, ficou sempre a sensação boa do cair da noite. Mas hoje era diferente! Eu estava irritado e a vermelhidão do céu me doía os olhos. Atravessei a rua e corri até a esquina para evitar o horizonte. Pronto, agora só havia prédios. Grande merda, pensei. O barulho e o frenesi das pessoas andando de um lado para outro como formigas me irritavam ainda mais. Andei duas quadras pela Santos Ramalho e então parei. Não via mais sentido naquilo, não via sentido em continuar a andar. Resolvi voltar. Anna precisava me escutar! Era isso! Acelerei o passo, dobrei novamente a esquina e me dirigi ao prédio. O céu agora já era quase noite. O último raio já tinha minguado pela ponta do prédio da Secretaria de Justiça. Olho para os lados e vou correndo até o outro lado da rua. Um carro manobra para sair do acostamento e vou por ali. Estou quase chegando até que...diabos, aquela senhora me aparece. Não sei de onde, mas surgiu bem a minha frente. Foi inevitável. Meu braço atinge seu peito e dá para sentir a dor naqueles olhos. ¬ Me perdoe! A senhora está bem?! Não respondeu. Mas o olhar me tremeu a alma. Uma mistura de dor, tremor e autopiedade que me descontrolaram de vez. ¬ Por favor, há algo que eu possa fazer? Me desculpe? Ela levanta a cabeça, seu olhar me mede de cima a baixo, arqueia o corpo, os olhos se arregalam e se fecham numa respiração resignada. Seguro-a pelos braços e a levanto. Mais uma vez a olho. Com as mãos me toca a barriga dando três tapinhas e remexe o corpo como que ajustando-o novamente. Se vira, me olha mais uma vez e baixa a cabeça três vezes como se me dissesse "você, você, você!" e segue seu a caminho. Olho o relógio: 7 horas em ponto. Vou até o portão e bato o interfone. O tempo passa e a esperança de um ruído que não vem aumenta minha respiração. Droga, apertei de novo! Atende! Ateeende! Por favor, Anna! Mas nada! Ela havia saído. Oh vida, praguejei! Oh merda! Ela tinha que sair nessa hora!? Meus pés não paravam de bater o chão e eu já estava quase pulando de ansiedade. O que fazer agora?! Eu não posso ficar sem dizer a ela o que eu sinto!
Imberbe. Tropeçava-me encabulado pela procura de tal palavra em minha mente. Era tão bela, tão cândida e ao mesmo tempo tão gozada. Imberbe, imberbe, imberbe... Repetia-me em meu colóquio interior buscando reminiscências. Traços de situações, de passagens, de textos, das imagens do pretérito. E na dança dos imberbes, saltitavam tal qual crianças nas brincadeiras de roda. Daí vinha o gozo. A repetição ora monótona, ora acelerada fazia com que tudo ficasse engraçado. Que diabos de coisa é essa tal de imberbe? Coisa solitária...imberbe era meu passado, perdido entre as crianças alegres espalhafatosas. Mas não é só isso, nem isso? Imberbe eram elas, todas, muitas mas uma só. A infância dividida entre cada um daqueles peculiares serezinhos e única...é isso...imberbe é o singular não solitário. Rodrigo! Rodrigo...

Meu nome suavemente pronunciado e um apertar macio em meu ombro despertam-me de minhas lembranças. - Você não ia sair? - Sim, sim... claro! Me perdoe! Eu estava apenas aqui pensando... - Huum.. Me conta outra novidade. Sua vida é sempre essa: pensar, pensar, pensar... Você poderia variar um pouco e fazer alguma coisa de verdade! O ódio transpirava por minhas mãos! Quem era ela para ficar me empurrando estas palavras? Santo Deus: em qual dia desta minha vida infeliz eu havia lhe dado tamanha intimidade? Gostaria de despejar todos os seus podres ali, agora, naquele mesmo momento. Mas não! Olho em seus olhos; ela percebe uma chispa de minha fúria. Cerro os punhos, fecho meus olhos por um instante, abro-os novamente, caminho lentamente até a mesa, pego o velho casaco e me encaminho para a porta. - Amanhã eu volto... [foram minhas únicas palavras] Ao fechar da tranca, senti como que uma mudança radical. O frio estava cortante. Lá dentro, o ar estava meio carregado com o calor de nossas respirações e o mofo daquelas paredes. Aqui fora estava realmente frio. Fecho os botões do casaco e olho para os lados. Já era tarde, o sol vermelho desmanchava-se por trás dos prédios.

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